União Estável À TROIS FEMMES

Rio de Janeiro registra a primeira união entre três mulheres

21/10/2015  |  Fonte: Assessoria de Comunicação do IBDFAM com informações do Espaço Vital

No dia 6 de outubro, o 15º Ofício de Notas do Rio de Janeiro oficializou a primeira união entre três mulheres de que se tem notícia no Brasil. O relacionamento poliafetivo envolve uma empresária, uma dentista e uma gerente administrativa. A união inclui cláusulas que dispõem sobre bens e até estabelece que, caso uma das mulheres esteja à beira da morte, ligada a aparelhos, por exemplo, apenas as outras duas podem decidir o que fazer. A ideia sobre formalizar a união surgiu após a empresária decidir que vai engravidar em 2016, pois ela deseja que na certidão de nascimento do bebê constem os sobrenomes das três parceiras.

O advogado Marcos Alves da Silva (PR), vice-presidente da Comissão de Ensino Jurídico de Família do IBDFAM, afirma que não sabe a razão de casos como este ainda causarem tanta comoção, exaltação, surpresa e espanto. Segundo ele, atualmente, no Brasil, não há como não reconhecer plena vigência ao princípio da pluralidade das entidades, consagrado no artigo 226 da Constituição Federal. “Ocorre que algumas representações simbólicas têm propensão à permanência. Estou me referindo ao casamento. Pelo casamento, era constituída a única família merecedora da tutela jurisdicional. Fora da instituição do casamento não existia salvação… não existia família. Todas as Constituições brasileiras, anteriores à de 1988, ao tratarem da família, preceituavam, invariavelmente, algo mais ou menos com essa dicção: ‘A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos’, inserindo ainda a assertiva de que o matrimônio era indissolúvel”, disse.

Para o advogado, com a Constituição Federal de 1988, houve uma mudança radical e tal câmbio, todavia, só tem sido percebido e assimilado gradativamente. “O caput do artigo 226 da Constituição atual é extremamente significativo. Nele não aparece mais o casamento. Estabelece apenas que ‘a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado’. Essa alteração foi recepcionada pela doutrina e pela jurisprudência como cláusula geral de inclusão. O Estado Democrático de Direito, erigido com a redemocratização do País, se abstém de definir o que é família. Ele apenas toma a si a missão de reconhecer a família como base da sociedade e de dispensar-lhe especial proteção. Esta simples alteração tem repercussões que ainda não foram percebidas pelos agentes do Direito (estudiosos, advogados, juízes, promotores) e pelos jurisdicionados em geral. O princípio da pluralidade das entidades familiares, todavia, seguirá reverberando e promovendo a inclusão de pessoas que estavam colocadas na invisibilidade jurídica, porque suas famílias não eram constituídas segundo os moldes e limites impostos pelo casamento civil tradicional”, explica.

Marcos Alves esclarece que a própria Constituição de 1988 faz referência a famílias que não aquelas originadas do casamento, como a união estável e a monoparental; porém, o rol de famílias enumeradas no artigo 226 da Constituição é meramente exemplificativo. “As possibilidades de ser e de se fazer família são infindáveis. O Supremo Tribunal Federal, julgando a ADI 4.277 e a ADPF132, conjuntamente, reconheceu como família a união estável entre pessoas do mesmo sexo, dando a tal união estável os mesmos e idênticos efeitos já consagrados à união estável heterossexual. Essa decisão, que está em absoluta consonância com o princípio da pluralidade das entidades familiares, consagrado constitucionalmente, impõe uma nova racionalidade. Trata-se de uma questão lógica. Se o entendimento de família foi descolado da noção que a aprisionava, isto é, união entre um homem e uma mulher para a criação de prole, com o estabelecimento de direitos, deveres e limitações impostas pelo próprio Estado, por meio da regulação detalhada do casamento, então, estamos diante de uma nova ratio jurídica, uma nova concepção de família. A família passou a ser reconhecida como tal, não em razão do preenchimento de requisitos estritos pré-formatados pela Lei e pela celebração de cerimônia ou contrato, por escritura pública ou instrumento privado”, elucida.

Segundo o advogado, a família passou a ser reconhecida antes de tudo como um fato social e temos uma cultura excepcionalmente cartorial. De acordo com Marcos Alves, a união estável pode ser juridicamente reconhecida como entidade familiar, independentemente da existência de pacto por instrumento público ou privado. “O que constitui a família atualmente não é uma declaração, nem a formalização deste ato perante um notário. A conjugalidade contemporânea, no Brasil, configura-se com a presença dos seguintes elementos constitutivos: afetividade, ostensibilidade, durabilidade, continuidade e a intenção de constituir família, intenção esta perceptível objetivamente a partir de dados concretos da vida em comum. Presentes esses elementos, a família, a princípio, está constituída. A própria filiação também se desprendeu da ficção estrita da presunção pater is est do casamento e do liame estritamente biológico, de forma que o Direito tem dado relevo muito especial à posse de estado de filho, que remete à situação jurídica subjetiva assemelhada à união estável. Nela, o que prevalece não é a dimensão registral, antes os fatos têm força jurígena, isto é, produzem efeitos jurídicos”, comenta.

De acordo com Marcos Alves, a Escritura Pública de Pacto de União Estável entre três mulheres pode ter um valor ou significado simbólico, mas o reconhecimento de tal união como família não depende, para o sistema jurídico brasileiro, de tal formalização. “Ela existe e é família porque está constituída como tal. Para ser união estável e, portanto, família, estas três mulheres não dependiam da lavratura de uma Escritura Pública de União Estável. Não deixo de reconhecer que a Escritura tem uma força simbólica, que chama a atenção da sociedade para uma família que quer se afirmar como tal, que recusa o desprezo e o preconceito social e a invisibilidade jurídica. A chamada ‘oficialização’ da união estável entre essas três mulheres cumpre o papel de proclamação de um direito fundamental, de uma liberdade existencial intocável. O Estado não tem o direito de dizer que não é família uma família que se reconhece como tal. Admitir essa possibilidade seria violar os princípios basilares e constitutivos do Estado Democrático de Direito: o da liberdade e da igualdade. E que não venham os religiosos levantar bandeiras equivocadas. O princípio da liberdade religiosa, direito importantíssimo e inviolável, nasce da mesma fonte que o direito dessas três mulheres que celebraram em Cartório sua união “à trois”. Da mesmíssima fonte. Da mesma forma como o Estado não pode dizer como devo crer ou não devo crer, como devo prestar ou não prestar culto, como devo constituir e organizar meu credo e minha intuição religiosa, ele, Estado, não tem legitimidade, no regime democrático, de dizer como devo constituir a minha família, como deve ser a minha forma de amar”, afirma.

Marcos Alves explica que o ingresso do Estado, nessa seara, construindo espaços de invisibilidade jurídica, isto é, negando a existência de famílias que de fato existem e se reconhecem como tais, implicaria afronta a direito subjetivo existencial, constitutivo daquilo que nos faz o que desejamos ser. “Portanto, uma afronta ao núcleo central da liberdade humana. Muitos religiosos, especialmente no Congresso Nacional, não enxergam a estupidez de suas teses reacionárias. Se levadas às últimas consequências, aniquilam com o princípio que dizem tanto defender: o da liberdade religiosa. Ora, essas duas liberdades, a de constituir família e a religiosa, são irmãs siamesas. Ambas estão situadas no campo da dimensão existencial e dizem respeito tão somente a decisões personalíssimas e não ao Estado. É necessária a defesa intransigente da construção de um espaço público (o da legalidade, por exemplo) onde caibam todos. Em um Estado laico, em uma sociedade plural e democrática, não há lugar para exclusões. Nenhuma ‘maioria moral’, nenhuma ‘hegemonia religiosa’ tem o direito de impor ao conjunto dos cidadãos os seus valores e crenças, ainda que julguem ser estes superiores, dados por Deus ou por qualquer espécie de revelação ou convicção política ou filosófica. A Constituição de 1988 abriu caminhos de redemocratização que ultrapassam a praça e avançam para as casas, para o campo do privado, que, aliás, sofria até então uma excessiva interferência regulatória do Estado. A Escritura Pública de União Estável à trois femmes constitui, portanto, um brado de liberdade, com amparo constitucional”, conclui.

União Estável À TROIS FEMMES

Marcos Alves da Silva [1]* | Entrevista para o PORTAL DO IBDFAM
Como observa a decisão do 15º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, que lavrou Escritura Pública de união estável entre três mulheres?
Sinceramente, não sei porque razão casos como este ainda causam tanta comoção, exaltação, surpresa e espanto. Atualmente, no Brasil, não há como não reconhecer plena vigência ao princípio da pluralidade das entidades, consagrado no art. 226 da Constituição Federal. Ocorre que algumas representações simbólicas têm propensão à permanência. Estou referindo-me ao casamento. Pelo casamento era constituída a única família merecedora da tutela jurisdicional. Fora da instituição do casamento não existia salvação… não existia família. Todas as Constituições brasileiras, anteriores à de 1988, ao tratarem da família, preceituavam, invariavelmente, algo mais ou menos com essa dicção: “A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos”, inserindo ainda a assertiva de que o matrimônio era indissolúvel.

Com a Constituição Federal de 1988, houve uma mudança radical. Tal câmbio, todavia, só tem sido percebido e assimilado gradativamente. O caput do art. 226 da Constituição atual é extremamente significativo. Nele não aparece mais o casamento. Estabelece apenas que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. Essa alteração foi recepcionada pela doutrina e pela jurisprudência como cláusula geral de inclusão. O Estado Democrático de Direito erigido com a redemocratização do País se abstém de definir o que é família. Ele apenas toma a si a missão de reconhecer a família como base da sociedade e de dispensar-lhe especial proteção.

Esta simples alteração tem repercussões que ainda não foram percebidas pelos agentes do Direito (estudiosos, advogados, juízes, promotores) e pelos jurisdicionados em geral. O princípio da pluralidade das entidades familiares, todavia seguirá reverberando e promovendo a inclusão de pessoas que estavam colocadas na invisibilidade jurídica, porque suas famílias não eram constituídas segundo os moldes e limites impostos pelo casamento civil tradicional.

A própria Constituição de 1988, faz referência a famílias que não aquelas originadas do casamento, como a união estável e a monoparental. Porém, o rol de famílias enumeradas no art. 226 da Constituição é meramente exemplificativo. As possibilidades de ser e de se fazer família são infindáveis. O Supremo Tribunal Federal, julgando a ADIn 4.277 e a ADPF132 conjuntamente, reconheceu como família a união estável entre pessoas do mesmo sexo, dando a tal união estável os mesmos e idênticos efeitos já consagrados à união estável heterossexual. Essa decisão, que está em absoluta consonância com o princípio da pluralidade das entidades familiares, consagrado constitucionalmente, impõe uma nova racionalidade.

Trata-se de uma questão lógica. Se o entendimento de família foi descolado da noção que a aprisionava, isto é, união entre um homem e uma mulher para a criação de prole, com o estabelecimento de direitos, deveres e limitações impostas pelo próprio Estado, por meio da regulação detalhada do casamento, então, estamos diante de uma nova ratio jurídica, uma nova concepção de família. A família passou a ser reconhecida como tal, não em razão do preenchimento de requisitos estritos pré-formatados pela Lei e pela celebração de cerimônia ou contrato, por escritura pública ou instrumento privado. A família passou a ser reconhecida antes de tudo como um fato social. Temos uma cultura excepcionalmente cartorial. A união estável pode ser juridicamente reconhecida como entidade familiar independentemente da existência de pacto por instrumento público ou privado. O que constitui a família atualmente não é uma declaração, nem a formalização deste ato perante um notário. A conjugalidade contemporânea, no Brasil, configura-se com a presença dos seguintes elementos constitutivos: afetividade, ostensibilidade, durabilidade, continuidade e a intenção de constituir família, intenção esta perceptível objetivamente a partir de dados concretos da vida em comum.

Presentes esses elementos, a família, a princípio está constituída. A própria filiação, também, desprendeu-se da ficção estrita da presunção pater is est do casamento e do liame estritamente biológico, de forma que o Direito tem dado relevo muito especial à posse de estado de filho, que remete à situação jurídica subjetiva assemelhada à união estável. Nela o que prevalece não é a dimensão registral, antes os fatos têm força jurígena, isto é, produzem efeitos jurídicos.

Digo tudo isso, para sublinhar que a Escritura Pública de Pacto de União Estável entre três mulheres pode ter um valor ou significado simbólico. Mas, o reconhecimento de tal união como família não depende, para o sistema jurídico brasileiro, de tal formalização. Ela existe e é família porque está constituída como tal. Para ser união estável e, portanto, família estas três mulheres não dependiam da lavratura de uma Escritura Pública de União Estável. Não deixo de reconhecer que a Escritura tem uma força simbólica, que chama a atenção da sociedade para uma família que quer se afirmar como tal, que recusa o desprezo e o preconceito social e a invisibilidade jurídica. A chamada “oficialização” da união estável entre essas três mulheres cumpre o papel de proclamação de um direito fundamental, de uma liberdade existencial intocável.

O Estado não tem o direito de dizer que não é família uma família que se reconhece como tal. Admitir essa possibilidade seria violar os princípios basilares e constitutivos do Estado Democrático de Direito: o da liberdade e da igualdade. E que não venham os religiosos levantar bandeiras equivocadas. O princípio da liberdade religiosa, direito importantíssimo e inviolável, nasce da mesma fonte que o direito dessas três mulheres que celebraram em Cartório sua união “à trois”. Da mesmíssima fonte. Da mesma forma como o Estado não pode dizer como devo crer ou não devo crer, como devo prestar ou não prestar culto, como devo constituir e organizar meu credo e minha intuição religiosa, ele, Estado, não tem legitimidade, no regime democrático, de dizer como devo constituir a minha família, como deve ser a minha forma de amar. O ingresso do Estado, nessa seara, construindo espaços de invisibilidade jurídica, isto é, negando a existência de famílias que de fato existem e se reconhecem como tais, implicaria afronta a direito subjetivo existencial, constitutivo daquilo que nos faz o que desejamos ser. Portanto, uma afronta ao núcleo central da liberdade humana.

Muitos religiosos, especialmente no Congresso Nacional, não enxergam a estupidez de suas teses reacionárias. Se levadas às últimas consequências aniquilam com o princípio que dizem tanto defender: o da liberdade religiosa. Ora, essas duas liberdades, a de constituir família e a religiosa, são irmãs siamesas. Ambas estão situadas no campo da dimensão existencial e dizem respeito tão somente à decisões personalíssimas e não ao Estado. É necessária a defesa intransigente da construção de um espaço público (o da legalidade, por exemplo) onde caibam todos.

Em um Estado laico, em uma sociedade plural e democrática, não há lugar para exclusões. Nenhuma “maioria moral”, nenhuma “hegemonia religiosa” tem o direito de impor ao conjunto dos cidadãos os seus valores e crenças, ainda que julguem ser estes superiores, dados por Deus ou por qualquer espécie de revelação ou convicção política ou filosófica. A Constituição de 1988 abriu caminhos de redemocratização que ultrapassam a praça e avançam para as casas, para o campo do privado, que, aliás, sofria até então, uma excessiva interferência regulatória do Estado. A Escritura Pública de União Estável à trois femmes constitui, portanto, um brado de liberdade, com amparo constitucional.
Como é regido o processo de oficialização de uniões poliafetivas?
Depende do que se possa entender por “oficialização”. Do meu ponto de vista, nenhum notário ou tabelião, no Brasil, poderia se recusar a fazer Escritura Pública de Contrato de União Estável entre mais de duas pessoas. A razão é simples. Não é requisito para configuração de união estável a existência de contrato estabelecido entre os companheiros. O cotrato constitui mera faculdade estabelecida pela lei, para que, por meio dele, os companheiros possam definir os efeitos patrimoniais da união entre eles estabelecida, conforme dispõe o art. 1.725 do Código Civil. O contrato pode ser celebrado por escritura pública ou por instrumento particular. Tem em ambos os casos exatamente o mesmo valor jurídico. A escritura pública tem apenas a vantagem da certeza, da autenticidade, isto é, da fé pública. Nada mais. Todavia, não é, repita-se o contrato que constitui a união estável. Ele presta-se a fazer prova do reconhecimento mútuo da união pelos declarantes. Equivoca-se, portanto, a imprensa quando, a respeito desse caso, afirma que “o relacionamento foi reconhecido em cartório”, ou algo semelhante.

A Escritura Pública de Pacto de União Estável entre as três mulheres feita pelo 15º Ofício de Notas do Rio de Janeiro não constituiu a união estável entre elas, nem sequer “oficializou”. Na Escritura Pública simplesmente foram reduzidas a termo as declarações das pessoas que celebram aquele pacto. O notário, neste caso, não atua com a mesma força e eficácia jurídica que o Juiz de Casamento (Juiz de Paz). Qualquer pessoa pode comparecer a um Cartório e solicitar que uma declaração sua seja reduzida a termo, por Escritura Pública. O notário não pode negar-se a prestar esse serviço. Todavia, os efeitos jurídicos que tal declaração irá produzir não dependem, em nada do Notário e do ato que praticou. Assim, a Escritura Pública só assegura que aquele ato foi praticado. Existe uma Escritura Pública de Pacto de União Estável entre três mulheres. Quanto a isso, não há a mínima dúvida. Os efeitos jurídicos das respectivas declarações e cláusulas constantes do pacto que celebraram vão depender, porém, do entendimento que o Poder Judiciário vier a firmar a respeito quando e se for provocado.

Em outras palavras, uma união estável entre três mulheres poderia ser reconhecida como autêntica família, merecedora de especial proteção, nos termos da Constituição Federal, mesmo que entre elas jamais houvesse sido celebrado contrato algum. O pacto só tem valor como prova para tornar inequívoco que as contraentes reconheciam sua união e definiam seus efeitos patrimoniais, outorgando inclusive mútuos poderes, em situações futuras que viessem a se configurar. É o mesmo que ocorre em relação a qualquer união estável entre duas pessoas.

Não existe, portanto, como no casamento, que é um negócio jurídico solene, uma “oficialização da união estável”. Não tenho notícia de que alguém tenha intentado habilitação para casamento à trois. Neste caso, sim, haveria propriamente uma oficialização da união. Mas, pelo menos, por ora, creio que a legislação brasileira não admite o casamento entre três pessoas, em razão da configuração da bigamia. Se bem que se poderia alegar conduta atípica, pois, para a configuração do crime de bigamia exige-se prévio casamento: “Contrair alguém, sendo casado, novo casamento” (CP, art. 235). Nesse caso não haveria prévio casamento. Mas, um só casamento simultâneo entre mais de duas pessoas. Esse, todavia, é assunto para outra ocasião.
Se há felicidade, liberdade e respeito, qual a razão de se não permitir uniões poliafetivas?
Evidentemente, não há como não permitir uniões poliafetivas. Isso só seria possível em um Estado totalitário, com a criminalização da conduta. Por exemplo, em alguns Países, até nos dias atuais, a homossexualidade configura crime. No estado atual da construção da democracia, no Brasil, esse seria um absurdo e um disparate sem precedentes.

A questão, portanto, não é “não permitir”. O problema é não ver, não reconhecer, isto é, negar o status jurídico de família a esse tipo de união. De fato, se há liberdade e respeito, não há razões minimamente plausíveis para se negar o reconhecimento jurídico a uma família ou conjugalidade. Presentes os requisitos da afetividade, publicidade, continuidade, durabilidade e a intenção de constituição de família, não importa a estrutura que tome a família. O Estado só tem legitimidade para intrometer-se no âmbito da família para assegurar a liberdade e o respeito àqueles que integram o núcleo familiar, especialmente os que se encontram em situação de vulnerabilidade, como pode ser o caso das crianças, da mulher e dos idosos. Fora dessas circunstâncias deve prevalecer o que dispõe o próprio Código Civil — que é retrógrado em muitos aspectos, mas, neste ponto, é de grande valor: “É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família” (CC, art. 1.513). Trata-se do que já foi muito apropriadamente designado “reserva da intimidade”.
No seu entendimento, hoje, a monogamia está superada no Brasil? Se sim, porque a maioria dos julgados insiste em não permitir o reconhecimento jurídico de uniões poliafetivas?
Esta questão da monogamia tem que ser bem entendida. Escrevi um livro cujo título é “Da monogamia: sua superação como princípio estruturante do direito de família” (Editora Juruá). Todavia, não estou a dizer que a monogamia está superada no Brasil. Grande parte dos casamentos e de todas as formas de conjugalidade pressupõe a exclusividade do par, no estabelecimento de relações sexuais. Esta é uma questão cultural. As pessoas, em regra, não admitem a existência de terceiros numa relação amorosa. Muitos casamentos e uniões estáveis encontram o seu fim com a descoberta de um relacionamento extraconjugal mantido pelo outro cônjuge ou companheiro. Seria, pois, uma afirmação ingênua e desprovida de qualquer fundamento fático e sociológico afirmar que a monogamia está superada no Brasil. Isto não é verdade. Ainda que, hipocritamente, exista um maior controle da sexualidade feminina e certa condescendência, liberalidade ou permissividade em relação à sexualidade masculina, não há dúvida de que, mesmo nesses casos, a “traição” e o “adultério” ainda são alvo da reprovação social.

A questão se põe em outro patamar. Basicamente, em relação à monogamia como princípio jurídico, duas ordens de ideias devem que ser enfrentadas. Uma diz respeito ao que foi e ainda é consagrado como concubinato e a outra se refere à liberdade.

Há uma dívida social imensa em relação à mulher índia, negra e a branca pobre, desqualificada socialmente. Durante séculos, desde o Brasil colônia, ao lado da chamada família legítima se instaurou à margem do Direito uma unidade doméstica desqualificada, preterida, marginalizada. Nesta unidade doméstica estavam os filhos ilegítimos, especialmente aqueles classificados como filiação espúria, isto é, os adulterinos, os incestuosos, os sacrílegos, etc. Estas crianças já nasciam sob o signo da exclusão. Com a Constituição de 1988, a horrenda discriminação restou superada. Mas, a mulher, pessoa de referência dessa família marginal, formada à margem e paralelamente ao casamento ou a outra união “mais oficial” continua marginalizada, em homenagem ao suposto princípio da monogamia. Sustento, no livro acima referido, que este princípio está superado. Esta mulher não pode seguir invisível ao Direito. Sua existência constituída em uma família não pode continuar sendo negada. Sustentar o princípio da monogamia como principio estruturante do Direito de Família implica negar vigência a princípios fundamentais como o da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da solidariedade, da democracia, da liberdade. Nem a monogamia tem um valor intrínseco e nem tão pouco pode servir de critério discriminatório e marginalizante, especialmente nos casos de família paralelas ou simultâneas.

Mas, o outro aspecto, o da liberdade, é o que mais importa para as considerações sobre as chamadas uniões poliamorosas ou poliafetivas. Como disse antes, a forma como uma família vai se constituir não é questão que diz respeito ao Estado. Neste campo, a doutrina e também a jurisprudência têm apontado na direção da maximização da liberdade. Se no campo das titularidades, das relações contratuais, das relações de consumo, a intervenção reguladora do Estado se faz cada vez mais presente e necessária, nas situações subjetivas existências tem prevalecido o entendimento da expansão da liberdade e da autodeterminação das pessoas.

Assim, é de todo evidente que a monogamia está superada como princípio jurídico. Não cabe ao Estado decidir como e de que forma devem se constituir as famílias. Admitir a monogamia como princípio, implica impor a todos os jurisdicionados um modelo de família fundada em uma dada concepção que não é única nem universal. Fulminaria com a liberdade. A monogamia pode ser a regra para a maioria das uniões, mas, uma regra interna, nascida do exercício da liberdade de constituir um par, uma conjugalidade, mas, jamais uma regra do Estado imposta a todos, como um ditame superior aplicável a todos.

Há, de fato, no Judiciário brasileiro certa resistência ao reconhecimento de famílias estranhas ao protótipo estabelecido pelo casamento. Note-se que a própria concepção jurídica da família formada da união estável constitui um arremedo de casamento. É uma pena que a legislação, a doutrina e a jurisprudência não tenham ainda atentado para a necessidade premente de uma construção autóctone de união estável desapegada do modelo do casamento. O problema é que o casamento ainda persiste no imaginário e no senso comum dos juristas como o grande e único protótipo de família. Quanto mais o arranjo familiar se distanciar do modelo, maior dificuldade encontrará para ser abarcado e reconhecido como família merecedora de tutela jurídica.

É necessário, por outro lado, fazer justiça ao Poder Judiciário. Se estivéssemos a depender exclusivamente do Legislativo, até hoje as uniões homoafetivas não teriam sido reconhecidas como entidade familiar, nem muito menos chegaríamos ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, como atualmente ocorre. Logo, é apenas uma questão de tempo. O Direito tem o seu próprio tempo. Sopesar, agir com prudência, com parcimônia é próprio dos Tribunais. A doutrina, isso é, a construção teórica do Direito, porém, deve lançar luzes sobre os novos caminhos a serem percorridos. Deve ser vanguardista, sem, contudo, ingressar na exaltação da novidade pela mera novidade.

Repito, a nova racionalidade instaurada pela Constituição Federal de 1988 em relação à compreensão da família ainda está a produzir reverberações. O novo paradigma abre enorme leque de possibilidades que respondem às demandas contemporâneas. Aplicável é ao Brasil o que o Presidente Barak Obama disse em um precioso discurso, no dia em que a Suprema Corte dos Estados Unidos entendeu que seria inconstitucional qualquer lei que vetasse o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Disse o Presidente americano: “Nossa nação foi fundada em um princípio fundamental, o de que somos todos iguais. O projeto de cada geração é colmatar o significado dessas palavras, fazendo-as soar em conformidade com as novas realidades resultantes das mudanças dos tempos. Uma busca incessante para assegurar que essas palavras soem verdadeiras (tenham sentido verdadeiro) para cada americano”. Entendo que esta afirmação é plenamente aplicável também para o caso brasileiro.

[1] * Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (2012). Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR (2001). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1995). Professor de Direito Civil integrante do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado) do Centro Universitário de Curitiba – UNICURITIBA. Professor da Escola da Magistratura do Paraná (EMAP). Professor da Fundação Ministério Público do Estado do Paraná (FEMPAR). Professor da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDCONST).  Integrante da Comissão de Educação Jurídica da OAB – Seção Paraná. Advogado em Curitiba – PR. Integrante da Comissão de Ensino Jurídico de Família do IBDFAM. 

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