A questão fundamental e subjacente da reflexão proposta pode ser assim enunciada: Que País quer-se construir? Que Brasil deseja-se afirmar? Por esta razão, faz-se oportuna a referência a um duro, tremendo e comovente testemunho de Ben Abraham, sobrevivente do Auschwitz, em 2010, na Universidade Positivo de Curitiba. Impressionante a resposta dada à pergunta de uma estudante sobre as razões que o levaram a escolher o Brasil para fixar residência após o fim da Guerra e do Holocausto.
Ben Abraham disse que, quando criança, na Polônia, mesmo antes da invasão alemã, os judeus, considerados escória, eram tremendamente discriminados. Exemplificou que, no caminho para a escola, atiravam-lhe pedras e objetos imundos. Ainda menino, algumas vezes, ouviu o seu pai conversando com os amigos sobre um país da América do Sul chamado Brasil. Referiam-se à terra como um lugar de tolerância, uma pátria multirracial, com um povo acolhedor de todos os povos.
Contou que, depois de passar pela barbárie indescritível de Auschwitz e de outros campos de concentração, os sobreviventes não desejavam mais voltar aos lugares onde tanto sofreram, mesmo antes de caírem sob o poder dos nazistas. Muitos sonharam e foram para o recém-criado Estado de Israel. Ben Abraham disse que, depois de tanto horror, ainda restaram nas reminiscências de sua memória as referências de seu pai em relação ao Brasil. Ele veio para o Brasil e encontrou aqui a acolhida sonhada. Naturalizou-se mais tarde brasileiro.
O depoimento de Ben Abraham torna-se precioso pano de fundo para a reflexão que ora se propõe. Que Brasil quer-se afirmar? Toda intolerância, seja por motivo religioso, étnico, racista, sexista, de orientação sexual, tem o mesmo genes. E a intolerância ganha dimensões de tragédia quando é incrementada pelos aparelhos do Estado. Mas, por outro lado, também, a leniência ou mesmo a abstinência do Estado em relação a essa situação permite o esfacelamento do projeto democrático.
O Estado democrático de direito brasileiro, que encontra seu desenho jurídico na Constituição Federal de 1988, não é um dado. Não está pronto como que por declaração do constituinte. O Estado democrático de direito se faz à medida que a Constituição, em sua dimensão prospectiva, se concretiza, historicamente, na dialética dos embates das diversas forças organizadas da sociedade civil.
A reflexão proposta sobre fundamentalismo religioso e intolerância tem como ponto de partida ou premissas os princípios constitucionais, que asseguram a democracia não apenas como limitação ao poder estatal em face das liberdades individuais. Assim, o Estado democrático de direito somente será efetivo se o princípio da democracia tiver sua reverberação também nas relações interprivadas.
A Constituição Federal, em seu art. 3º, elege como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil o princípio da pluralidade e da tolerância. Desta forma, todas as ações do Estado brasileiro devem ter como objetivo fundamental: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Se este é um dos objetivos da República, não é um objetivo meramente do Estado, mas da sociedade e de cada um dos brasileiros. Este é um dos pilares em que se fundam os sonhos da nação delineada na Carta Magna da República.
Por outro lado, desde a primeira Constituição republicana, o Brasil declarou-se um Estado laico. A laicidade do Estado é conditio sine qua non para uma autêntica democracia. Não se pode admitir que, por via transversa, valham-se do Estado maiorias religiosas ou grupos de pressão, para impor a todos os cidadãos preceitos de viés nitidamente dogmático-religioso. Estes preceitos podem legitimamente até ter incidência no âmbito da “jurisdição” dos fiéis ou adeptos de determinado credo, mas não podem alcançar generalidade impositiva para os cidadãos de um Estado que se diz democrático.
O princípio da laicidade do Estado, expresso no art. 19 da Constituição Federal, veda aos entes federativos não só estabelecer cultos religiosos ou subvencioná-los, mas também veda-lhes manter com as entidades religiosas ou com seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. O princípio da laicidade do Estado é, também, o que assegura o próprio princípio da liberdade religiosa e da liberdade de opinião.
Ainda que, implicitamente, a Constituição estabelece o princípio do livre desenvolvimento da personalidade, ao tornar invioláveis a intimidade e a vida privada, nos termos do inciso X, art. 5º da Carta Magna. O princípio da inviolabilidade da intimidade não deve ser referido a partir de uma perspectiva individualista proprietária do modelo liberal, enunciado na expressão norte-americana, My home is my castle, mas, sim, como o direito de autodeterminação, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, o direito à autonomia em relação à própria dimensão existencial. O Estado não pode e não deve imiscuir-se nessa esfera e nem tampouco os particulares, sejam organizações religiosas, partidos políticos, sindicatos, ou qualquer outro tipo de associação.
Merece ainda referência o princípio da pluralidade das entidades familiares, consagrado no art. 226 da Constituição Federal. O professor Paulo Luiz Netto Lôbo sustenta a inexistência de hierarquia entre as modalidades de família enumeradas neste artigo da Constituição, bem como a inexistência de um rol taxativo e redutor das possibilidades de estruturação familiar. Portanto, o princípio da pluralidade das entidades familiares implica a superação do monismo que reconhecia no casamento a única fonte da família merecedora da tutela estatal.
Estes princípios, de igual modo, não ganham força pela sua simples enunciação no texto constitucional. Adquirem densidade normativa à medida, e tão-somente à medida, em que são incorporados pelo discurso operativo daqueles que detêm o poder, especialmente, o Legislativo, o Judiciário e o Executivo.
No contexto desse Estado democrático de direito em construção é que se toma em consideração o tema do fundamentalismo religioso e a intolerância, especialmente, tendo como foco a homofobia.
Partindo de algumas premissas, é possível entender-se o fundamentalismo ou talvez, com maior precisão, a alma do fundamentalismo, isto é, como alguém se torna fundamentalista.
O fundamentalismo tem origem no medo. Medo em face da imprevisibilidade, medo em face da falta de estabilidade, medo em face do estranhamento do diferente. Em germe, o fundamentalismo existe em todo ser humano. Ele pode ou não desenvolver-se, ganhando expressão religiosa em alguns casos ou vestindo-se do manto político-ideológico em outros. O fundamentalismo, de qualquer sorte, está sempre vinculado à intolerância ao diverso, ao diferente.
Para melhor explicitar, torna-se interessante o empréstimo de algumas metáforas preciosas de Caetano Veloso, na consagrada poesia de seu Sampa, imortalizado no cancioneiro da música popular brasileira. “…quando eu cheguei por aqui eu nada entendi / Da dura poesia concreta de tuas esquinas / Da deselegância discreta de tuas meninas”. O fundamentalista se retrai diante da complexidade e do choque com o diferente, se enclausura e nega aquela dura e concreta realidade. Falta quem lhe traduza o diferente: “Ainda não havia para mim Rita Lee / A tua mais completa tradução”. São os novos baianos diante da concretude dura da cidade de São Paulo. A revelação do estranhamento em face do diferente vem no verso seguinte: “Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto / Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto / É que Narciso acha feio o que não é espelho / E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho.” O fundamentalista é aquele que, movido pelo pavor do novo, retrai-se e nega o diferente.
O fundamentalista não admite a possibilidade do diverso ou diferente. Se o outro existe a sua própria existência é negada: “Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto”. Admitir o outro constitui uma luta existencial para o fundamentalista. O reconhecimento do diferente o “des-afirma”. A saída para ele é, então, pronunciar a palavra discriminatória: “Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto.” E Caetano explica como nenhum outro poderia: “É que Narciso acha feio o que não é espelho / E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho.” O novo ou diferente é negado porque não é idêntico, não é espelho.
Sem jamais pretender explicar o fundamentalismo, crê-se, porém, que Caetano Veloso desvela sua alma, sua essência. Se o fundamentalismo — inclusive o religioso — encontra a condição de sua existência no medo do diferente, ele ganha consistência pela afirmação da detenção da Verdade. O dogmatismo é estabelecido a partir de uma epistemologia que não abre campo para dúvida e, portanto, nega a compreensão diversa, as possibilidades argumentativas, o contraditório.
As metáforas, novamente, facilitam a compreensão do dogmatismo característico de todo fundamentalismo. Em seu livro Protestantismo e Repressão, Rubem Alves relembra uma citação de Soren Kierkegaard: “Se Deus tivesse na sua mão direita toda a Verdade, e na sua mão esquerda somente apenas o perpétuo impulso na direção da verdade, muito embora acrescido do fato de que estou destinado a errar sempre e eternamente, e me dissesse: ‘Escolhe’, eu escolheria a sua mão esquerda e diria: ‘Dá, ó Pai! A Verdade pura, na verdade, é para Ti somente’.”[3] Se alguém tem a pretensão de ter, em sua mão, a Verdade, ele se faz igual a Deus. Ora, se alguém tem a Verdade, não há por que tolerar aquele que pensa e age de forma diversa. Por essa razão, o dogmatismo é irmão siamês da intolerância, da exclusão e da negação do diferente.
A proposta de Kierkegaard é a da tolerância: Se a pessoa se sabe dotada apenas do perpétuo impulso em direção à verdade, mas consciente de que está fadado a errar sempre e eternamente, esta consciência a coloca numa postura de diálogo e de abertura para o outro, para aquele que tem compreensão diversa.
Nesta ordem de idéias, vale a pena lembrar os ensinamentos do bispo brasileiro que deixou um precioso legado: Dom Hélder Câmara. Dizia o Bispo de Recife:
Ter ao próprio lado quem só sabe dizer amém, quem concorda sempre, de antemão e incondicionalmente, não é ter um companheiro, mas, sim, uma sombra de si mesmo. Desde que a discordância não seja sistemática e proposital, que seja fruto de visão diferente, a partir de ângulos novos, importa, de fato, em enriquecimento. (…)
Se discordas de mim, tu me enriqueces
Se és sincero e buscas a verdade
e tentas encontrá-la como podes,
ganharei
tendo a honestidade
e a modéstia
de completar com o teu
meu pensamento,
de corrigir enganos,
de aprofundar a visão…[4]
Infelizmente, a visão ecumênica, em seu sentido mais amplo — isto é, a possibilidade de coexistência com o diferente fundada no amor — não é prevalecente na maioria das igrejas, o que inclui lideranças católicas, protestantes históricos e evangélicos do alto e baixo clero e de todos os naipes.
Nas considerações sobre o fundamentalismo e a homossexualidade, esta análise limita-se, especificamente, ao mundo protestante, por suas peculiaridades. A homofobia do fundamentalista protestante tem relação com um dogma: a doutrina da inerrância das Escrituras Sagradas. Na busca de estabilidade e segurança para a interpretação do mundo e da própria vida, o fundamentalista apega-se à literalidade da Bíblia e sustenta a impossibilidade de haver erros de qualquer natureza no texto sagrado.
Esta doutrina, todavia, não é exclusiva do protestantismo. É conhecida a história de Galileu Galilei que foi instado a retratar-se de sua teoria heliocêntrica, isto é, de que os planetas giravam em torno do Sol. Isso porque, a partir do texto bíblico, a Igreja sustentava que o Sol girava em torno da terra. Galileu retratou-se para não experimentar as chamas da fogueira da Inquisição. Mas, certamente, resmungou para si mesmo que uma declaração não mudaria um dado, uma constatação. Martin Buber bem interpretou esse episódio da vida de Galileu. “Se o Sol gira em torno da Terra ou o inverso é questão de profunda indiferença, quando se trata de continuar a viver ou morrer.” E completa o filósofo alemão: “Boas razões para viver são, também, boas razões para morrer”. Diferentemente de Galileu, outros tantos enfrentaram a fúria inquisitória, porque as razões que justificam a vida, também justificavam a opção que os levaria à morte. O dogmatismo presente será — quase que necessariamente — a vergonha futura. Hoje, nenhuma criança do ensino fundamental afirmaria que o Sol gira em torno da Terra. O que atualmente constitui obviedade quase levou um gênio estudioso à morte.
A questão da homofobia tem seu fundamento doutrinário na leitura literalista da Bíblia. Existem textos bíblicos que condenam com veemência não a homossexualidade — isto seria um anacronismo — mas a prática de atos homossexuais. Texto recorrentemente referido é o do Livro de Levítico, capítulo 20, versículo 13: “Se um homem se deitar com outro homem como quem se deita com uma mulher, ambos praticaram um ato repugnante. Terão que ser executados, pois merecem a morte”.
Tomando como fundamento este texto, a homossexualidade foi criminalizada em países de matriz protestante como os Estados Unidos. O processo de descriminalização é bem recente. Illinois foi o primeiro Estado americano a descriminalizar a homossexualidade, e isso ocorreu só em 1962.
Óbvio que o senso comum de uma religiosidade fundamentalista não cede facilmente à superação de um dogma. Se este ruir, desmorona todo o edifício, porque, se há um erro nas Escrituras Sagradas, abre-se brecha para outros tantos, de tal sorte que a fé perde o alicerce do texto enunciador da verdade. Tanto é assim que, nos Estados Unidos, assiste-se, na atualidade, uma verdadeira cruzada dos defensores da teoria criacionista, invadindo as escolas e universidades.
Admitir que o Estado reconheça e dê tutela às relações homoafetivas, e que homens e mulheres, homossexuais ou bissexuais, constituam família chancelada por lei revela-se uma ofensa à própria fé e põe em risco a vida e as razões de ser da existência do fundamentalista. Não se trata para ele de uma afirmação científica, análoga à discussão sobre o heliocentrismo e o geocentrismo. Admitir status de cidadania às conformações familiares homoafetiavas, para o fundamentalista, torna-se uma agressão de natureza existencial. A intolerância manifesta-se no nível do discurso, mas, em determinadas situações, pode materializar-se em violência física, como no caso da Ku Klux Klan e dos Skinheads.
A análise, aqui, desenvolvida não tem a pretensão de fixar uma plataforma de conclusões ou de proposições, apenas suscita algumas questões para o debate.
Existe possibilidade de um processo argumentativo para o estabelecimento de provisórios consensos, quando os interlocutores partem de bases epistemológicas completamente diversas? Em outra formulação, a afirmação dogmático-religiosa da “Verdade” é permeável a uma discussão questionadora que tome a dúvida metodológica como premissa? Ainda a mesma pergunta: É possível diálogo proveitoso e produtivo com o fundamentalismo? Em caso afirmativo, quais seriam as estratégias para esse exercício?
O que representa a defesa do Estado laico como base de partida para a luta contra as várias formas de homofobia? Como o princípio do Estado laico pode garantir anteparo contra a imposição de preceitos particulares de um credo à totalidade de uma sociedade plural, multiforme, e não-confessional?
Que riscos a luta contra o fundamentalismo corre de ela mesma assumir posturas fundamentalistas? Pode a luta contra a homofobia fundamentalista acabar por negar a possibilidade do pensamento diverso? Há associações no Brasil que só admitem homens no seu quadro de associados. Outras somente aceitam mulheres. A Igreja Católica e muitas igrejas evangélicas não permitem o ministério feminino. Assim, uma associação poderia ser tolhida em sua autonomia, caso não receba em seu quadro de religiosos pessoas homossexuais? Há diferença entre a discriminação sexista e a discriminação em razão da orientação sexual?
Pode o Estado ingressar no âmbito do direito associativo, que constitui, também, direito fundamental, para impor restrições a esses tipos de discriminação? Ou ainda, é possível num Estado democrático de direito proibir-se a pregação contra a homossexualidade, nas igrejas ou organizações religiosas, justificada por convicção de fé? Tal proibição ou criminalização de conduta é o melhor caminho neste momento histórico?
E no espaço público, como nas Forças Armadas, é possível admitir-se qualquer tipo de discriminação fundada em homofobia? Ou deve prevalecer a hipocrisia norte-americana do Don’t Ask, Don’t Tell (DADT)? Homossexualidade velada passa, declarada jamais. O espaço público deve ser tratado de forma diferenciada em relação ao espaço() associativo privado?
Ao fim e ao cabo, a pergunta fundamental: Que País quer-se construir ou que Brasil pretende-se afirmar? A discriminação contra os homossexuais foi um dos emblemas do regime nazista. Vê-se, pois, que a luta por um País no qual haja lugar para a coexistência digna de todos não é travada apenas em face do fundamentalismo religioso. Mas é uma luta contra todo tipo de dogmatismo e intolerância. E, se há uma oração…. é para que Deus livre os brasileiros do cinismo e da hipocrisia que Chico Buarque tão bem retratou em Geni e o Zepelin.
Subjacente a estas anotações sobre o fundamentalismo religioso e a homofobia está esperança de construir um Brasil no qual haja lugar para todos e que o multiculturalismo não seja mera vitrine ou mote de marketeiros. A democracia somente mostrará sua vitalidade, quando nenhum ser humano for discriminado em razão de sua origem social ou étnica, sua orientação sexual, cor da pele, idade ou qualquer outra característica que o distinga dos demais. Este é um dos objetivos da República refundada com a Constituição de 1988.