No dia 6 de outubro, o 15º Ofício de Notas do Rio de Janeiro oficializou a primeira união entre três mulheres de que se tem notícia no Brasil. O relacionamento poliafetivo envolve uma empresária, uma dentista e uma gerente administrativa. A união inclui cláusulas que dispõem sobre bens e até estabelece que, caso uma das mulheres esteja à beira da morte, ligada a aparelhos, por exemplo, apenas as outras duas podem decidir o que fazer. A ideia sobre formalizar a união surgiu após a empresária decidir que vai engravidar em 2016, pois ela deseja que na certidão de nascimento do bebê constem os sobrenomes das três parceiras.
O advogado Marcos Alves da Silva (PR), vice-presidente da Comissão de Ensino Jurídico de Família do IBDFAM, afirma que não sabe a razão de casos como este ainda causarem tanta comoção, exaltação, surpresa e espanto. Segundo ele, atualmente, no Brasil, não há como não reconhecer plena vigência ao princípio da pluralidade das entidades, consagrado no artigo 226 da Constituição Federal. “Ocorre que algumas representações simbólicas têm propensão à permanência. Estou me referindo ao casamento. Pelo casamento, era constituída a única família merecedora da tutela jurisdicional. Fora da instituição do casamento não existia salvação… não existia família. Todas as Constituições brasileiras, anteriores à de 1988, ao tratarem da família, preceituavam, invariavelmente, algo mais ou menos com essa dicção: ‘A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos’, inserindo ainda a assertiva de que o matrimônio era indissolúvel”, disse.
Para o advogado, com a Constituição Federal de 1988, houve uma mudança radical e tal câmbio, todavia, só tem sido percebido e assimilado gradativamente. “O caput do artigo 226 da Constituição atual é extremamente significativo. Nele não aparece mais o casamento. Estabelece apenas que ‘a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado’. Essa alteração foi recepcionada pela doutrina e pela jurisprudência como cláusula geral de inclusão. O Estado Democrático de Direito, erigido com a redemocratização do País, se abstém de definir o que é família. Ele apenas toma a si a missão de reconhecer a família como base da sociedade e de dispensar-lhe especial proteção. Esta simples alteração tem repercussões que ainda não foram percebidas pelos agentes do Direito (estudiosos, advogados, juízes, promotores) e pelos jurisdicionados em geral. O princípio da pluralidade das entidades familiares, todavia, seguirá reverberando e promovendo a inclusão de pessoas que estavam colocadas na invisibilidade jurídica, porque suas famílias não eram constituídas segundo os moldes e limites impostos pelo casamento civil tradicional”, explica.
Marcos Alves esclarece que a própria Constituição de 1988 faz referência a famílias que não aquelas originadas do casamento, como a união estável e a monoparental; porém, o rol de famílias enumeradas no artigo 226 da Constituição é meramente exemplificativo. “As possibilidades de ser e de se fazer família são infindáveis. O Supremo Tribunal Federal, julgando a ADI 4.277 e a ADPF132, conjuntamente, reconheceu como família a união estável entre pessoas do mesmo sexo, dando a tal união estável os mesmos e idênticos efeitos já consagrados à união estável heterossexual. Essa decisão, que está em absoluta consonância com o princípio da pluralidade das entidades familiares, consagrado constitucionalmente, impõe uma nova racionalidade. Trata-se de uma questão lógica. Se o entendimento de família foi descolado da noção que a aprisionava, isto é, união entre um homem e uma mulher para a criação de prole, com o estabelecimento de direitos, deveres e limitações impostas pelo próprio Estado, por meio da regulação detalhada do casamento, então, estamos diante de uma nova ratio jurídica, uma nova concepção de família. A família passou a ser reconhecida como tal, não em razão do preenchimento de requisitos estritos pré-formatados pela Lei e pela celebração de cerimônia ou contrato, por escritura pública ou instrumento privado”, elucida.
Segundo o advogado, a família passou a ser reconhecida antes de tudo como um fato social e temos uma cultura excepcionalmente cartorial. De acordo com Marcos Alves, a união estável pode ser juridicamente reconhecida como entidade familiar, independentemente da existência de pacto por instrumento público ou privado. “O que constitui a família atualmente não é uma declaração, nem a formalização deste ato perante um notário. A conjugalidade contemporânea, no Brasil, configura-se com a presença dos seguintes elementos constitutivos: afetividade, ostensibilidade, durabilidade, continuidade e a intenção de constituir família, intenção esta perceptível objetivamente a partir de dados concretos da vida em comum. Presentes esses elementos, a família, a princípio, está constituída. A própria filiação também se desprendeu da ficção estrita da presunção pater is est do casamento e do liame estritamente biológico, de forma que o Direito tem dado relevo muito especial à posse de estado de filho, que remete à situação jurídica subjetiva assemelhada à união estável. Nela, o que prevalece não é a dimensão registral, antes os fatos têm força jurígena, isto é, produzem efeitos jurídicos”, comenta.
De acordo com Marcos Alves, a Escritura Pública de Pacto de União Estável entre três mulheres pode ter um valor ou significado simbólico, mas o reconhecimento de tal união como família não depende, para o sistema jurídico brasileiro, de tal formalização. “Ela existe e é família porque está constituída como tal. Para ser união estável e, portanto, família, estas três mulheres não dependiam da lavratura de uma Escritura Pública de União Estável. Não deixo de reconhecer que a Escritura tem uma força simbólica, que chama a atenção da sociedade para uma família que quer se afirmar como tal, que recusa o desprezo e o preconceito social e a invisibilidade jurídica. A chamada ‘oficialização’ da união estável entre essas três mulheres cumpre o papel de proclamação de um direito fundamental, de uma liberdade existencial intocável. O Estado não tem o direito de dizer que não é família uma família que se reconhece como tal. Admitir essa possibilidade seria violar os princípios basilares e constitutivos do Estado Democrático de Direito: o da liberdade e da igualdade. E que não venham os religiosos levantar bandeiras equivocadas. O princípio da liberdade religiosa, direito importantíssimo e inviolável, nasce da mesma fonte que o direito dessas três mulheres que celebraram em Cartório sua união “à trois”. Da mesmíssima fonte. Da mesma forma como o Estado não pode dizer como devo crer ou não devo crer, como devo prestar ou não prestar culto, como devo constituir e organizar meu credo e minha intuição religiosa, ele, Estado, não tem legitimidade, no regime democrático, de dizer como devo constituir a minha família, como deve ser a minha forma de amar”, afirma.
Marcos Alves explica que o ingresso do Estado, nessa seara, construindo espaços de invisibilidade jurídica, isto é, negando a existência de famílias que de fato existem e se reconhecem como tais, implicaria afronta a direito subjetivo existencial, constitutivo daquilo que nos faz o que desejamos ser. “Portanto, uma afronta ao núcleo central da liberdade humana. Muitos religiosos, especialmente no Congresso Nacional, não enxergam a estupidez de suas teses reacionárias. Se levadas às últimas consequências, aniquilam com o princípio que dizem tanto defender: o da liberdade religiosa. Ora, essas duas liberdades, a de constituir família e a religiosa, são irmãs siamesas. Ambas estão situadas no campo da dimensão existencial e dizem respeito tão somente a decisões personalíssimas e não ao Estado. É necessária a defesa intransigente da construção de um espaço público (o da legalidade, por exemplo) onde caibam todos. Em um Estado laico, em uma sociedade plural e democrática, não há lugar para exclusões. Nenhuma ‘maioria moral’, nenhuma ‘hegemonia religiosa’ tem o direito de impor ao conjunto dos cidadãos os seus valores e crenças, ainda que julguem ser estes superiores, dados por Deus ou por qualquer espécie de revelação ou convicção política ou filosófica. A Constituição de 1988 abriu caminhos de redemocratização que ultrapassam a praça e avançam para as casas, para o campo do privado, que, aliás, sofria até então uma excessiva interferência regulatória do Estado. A Escritura Pública de União Estável à trois femmes constitui, portanto, um brado de liberdade, com amparo constitucional”, conclui.